A Substância: o terror é ser mulher

 (Se você ainda não viu o filme “A Substância”, saiba que este texto está cheio de spoilers, continue por sua conta e risco.)


Sei que tem muitos comentários sobre o filme por aí na internet, mas eu quero registrar as minhas impressões e reflexões sobre o filme, não só porque ele me impactou bastante, mas porque ele tem tudo a ver com o motivo pelo qual criei este blog. Para além da análise mais simplista, de que ele seria uma crítica aos procedimentos estéticos aos quais as mulheres recorrem a partir dos 40, o filme é bem mais contundente e explícito para criticar o terror que é ser mulher neste mundo. Preciso dar o crédito à expressão “o terror é ser mulher” à minha amiga Virgínia, do canal Tamarindo Books, nesse vídeo em que ela fala de literatura de terror. Ainda que o vídeo não trate em nada sobre o filme, ele me fez perceber melhor as representações que a diretora colocou ali, na nossa cara, para deixar bastante claro o que ela queria que sentíssemos ao acompanhar a história de Elisabeth Sparkle – aliás, muito bem interpretada por Demi Moore, belíssima.

Começando pelo gênero, filme de terror é algo que não sou nem um pouco adepta, normalmente, eu fujo. Tanto que as referências aos clássicos de terror que a diretora inseriu me passaram batido por falta de repertório. Mas, na minha opinião, a escolha da diretora foi extremamente feliz. As situações às quais as mulheres são submetidas (e se submetem) para estar no mercado de trabalho, em relacionamentos e se tornarem visíveis são mesmo aterrorizantes. Elisabeth teve toda uma carreira de sucesso, como modelo de beleza e estilo de vida, recebeu prêmios, tem uma vida financeira confortável. Repentinamente, seu chefe branco, velho e horroroso decide que ela é quem está velha e a demite sem nenhum remorso. As cenas do chefe são propositadamente nojentas, para causar esta sensação física em quem poderia não achar nada demais nas palavras horrendas que ele usa para descartar Elisabeth.

O impacto que Elisabeth sofre é demonstrado pelo acidente que a leva ao hospital, onde ela é examinada por dois homens e recebe a oferta da Substância, sem ter solicitado ou sequer demonstrado qualquer tipo de interesse em uma intervenção. Quantas vezes nós escutamos sugestões do tipo vindas de pessoas aleatórias e desconhecidas? E, quantas vezes, nós levamos em consideração este tipo de comentário invasivo a sério e procuramos este tipo de “solução” para um “problema” que não tínhamos até então? Ela solicita A Substância e se torna a matriz do que seria “a sua melhor versão”, essa expressão tão usada para absolutamente tudo nos dias atuais. Curiosamente, a melhor versão de Elisabeth é Sue, jovem, linda e com todas aquelas certezas da juventude, que não se preocupa com o dia de amanhã, nem com quem está a seu redor, muito menos com sua matriz, da qual ela usa, abusa e suga todos os recursos, de uma forma literal. Se tem uma representação melhor de como vemos os idosos sustentando os jovens nas últimas décadas, sendo deixados à míngua de forma material e emocional, sendo ignorados, usados e descartados, eu ainda não vi. É a literalidade dos atos que nos aterroriza e causa repulsa.

Sue nos seduz todo o tempo com sua beleza e sensualidade, sendo devorada com os olhos e as bocas nojentas dos homens decrépitos que a cercam. Sua energia efusiva e, ao mesmo tempo, vazia, não deixa espaço para que se lembre em nenhum momento de que ela e Elizabeth são uma só, e decide que apenas ela tem o direito de gozar a vida. Para isso, subverte a regra de uso da Substância, e transforma Elisabeth em uma fonte de energia vital, ainda que isso vá destruir, literalmente, a sua matriz. Nos momentos em que Elisabeth é trazida de volta do seu status de “fonte”, ela não consegue se libertar da utilização da Substância, por não se entender como aquele corpo envelhecido e deformado, e prefere continuar se sujeitando às atrocidades, se anulando, numa esperança vã de que a sua parte jovem reconhecerá que elas são uma só. Elisabeth, então, dedica seu tempo a se encher de comida, compulsivamente, para provocar Sue e tentar chamar sua atenção. Temos, então, a cena tragicômica da coxinha de frango indo diretamente para os quadris perfeitos de Sue, uma representação de como somos ensinadas desde tenra idade a sermos comedidas ao nos alimentar, afinal, ser bela e magra é nosso único valor enquanto uma jovem mulher.

As cenas violentas de Sue contra Elisabeth me causaram profundo sofrimento e são as piores para mim. Só me faz pensar em como somos cruéis com nós mesmas, na autocrítica exagerada, na forma nada gentil como nos referimos a quem somos, em como somos ensinadas a nos desprezar e a enaltecer os demais. E, novamente na literalidade da cena, em como a juventude despreza e tem nojo da velhice, em como o que é velho não tem nenhum valor e pode ser maltratado até morrer, reside o terror.

Sue se sente livre para desfrutar de todo o glamour da juventude após eliminar Elisabeth, porém, é lembrada de que elas eram apenas uma e de que a sua juventude e beleza só poderiam existir e persistir enquanto Elisabeth pudesse provê-la: a velha, afinal, era a fonte da juventude. Desesperada, ela quebra outra regra do uso da Substância e, em seu desespero, dá origem ao monstro Elisasue, que decide se arrumar e comparecer ao grande momento, ápice da glória que Sue aspirava. Ainda que este arco final seja a extrapolação mais ousada do filme, ele nos coloca num lugar de espectador do show de horrores, literalmente. Ao tentar ser uma “melhor versão da melhor versão”, os vários pedaços fundidos e reagrupados em Elisasue dão origem aos piores pesadelos da plateia ávida por consumir a beleza e a juventude de Sue, esfregando na cara deles (e na nossa) todo o horror ao qual as duas mulheres se submeteram e foram submetidas para o deleite daquelas pessoas mal vestidas, nojentas e vazias, que, ao invés de estarem vivendo a noite de ano novo em suas casas, estavam ali para comer com os olhos a jovem mocinha que viam pela tela da tv. Ao se depararem com a monstruosidade que ajudaram a criar, atacam Elisasue, que derrama todo o seu sangue sobre eles, até se arrastar ao seu refúgio na memória e se desfazer sobre a sua estrela esquecida na calçada da fama. 

Eu achei o filme um soco no estômago e ele vai ficar na minha cabeça por muito tempo, decantando e me provocando pensamentos. Não é um filme fácil, mas achei a literalidade de tudo bastante efetiva, é o tipo de coisa que não vai dar pra desver. O fato de que Elisabeth e Sue só contracenem com homens e que a única mulher com quem convivem é ela mesma nas duas versões, impressiona demais por mostrar como somos ensinadas a buscar a validação masculina em todos os campos de nossa vida. E acende o alerta: será que o problema é mesmo a Substância (ou os procedimentos estéticos, a busca pela beleza) ou o fato de que aceitamos nos moldar pelas opiniões dos outros, como se nosso lugar no mundo só tivesse valor enquanto recebemos essa validação? A minha impressão é que Elisabeth Sparkle só precisava de uma amiga para segurar sua mão e dizer que ela não precisava de uma “versão melhor”, ela precisava fazer as pazes consigo mesma e encarar a passagem do tempo com mais carinho e gentileza. O terror de Elisabeth foi ser sozinha e estar cercada de homens por todos os lados. E não é esse o terror em ser mulher?